Gerência Clínica Médica

Christiano Roberto Barros

Médico cardiologista, diarista na UTI Coronariana, que nesse momento de pandemia foi transformada numa unidade Covid, uma unidade respiratória. Atua no HEB desde 2003.
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Confira o depoimento

Relato sobre o começo da pandemia | julho de 2020


"A gente começou com muito medo, a equipe toda, porque é uma doença nova, que as pessoas no mundo todo não sabiam muito como lidar e o risco de infecção... Mas ao mesmo tempo a necessidade de querer ajudar e de fazer o melhor. E dentro daquilo a gente iniciou com isolamento específico de uma unidade no segundo andar onde a gente trabalhava, que era a Unidade de Cardiologia. E pela característica dessa unidade, presença de boxes e facilidade de isolamento, ela foi isolada. E a rotina do dia a dia mudou completamente. A gente atendia uma gama de pacientes que eram graves mas com complexidades diferentes. O covid trouxe pra toda equipe, além da questão do medo, lidar com uma doença que a gente não conhecia muito bem. E como era a evolução dessa doença nos pacientes. No dia a dia a gente foi se preparando, estudando, aprendendo, uma carga de trabalho muito grande.
E estamos aí há quase 4 meses. Fechamos a unidade no meio de março, coincidente com o lockdown em São Paulo, e a gente já preparou a unidade para receber pacientes e, desde então, esse contingente vem aumentando e a gente vivendo o dia a dia com essa nova realidade.

/.../muito presente na nossa vida. Não é só o medo da gente se contaminar. Mas da gente levar isso para a família. Da gente não conseguir fazer o melhor pelo paciente... Na faculdade a gente tem uma coisa que chama muito atenção: omnium primum non nocere (antes de tudo não causar dano). Essa história, para o médico, veio à tona de uma maneira tão importante nessa pandemia, porque, veja, tudo o que a gente vinha fazendo será que era o melhor para o paciente?, por não conhecer, por ser uma doença com características novas...? A gente tem sempre o medo de não estar fazendo o melhor ou daquela conduta não ser a melhor para o doente...
Então, não é só o medo da gente se contaminar... Claro, existe o medo... Mas quando você está lá, embuído no seu trabalho, no dia a dia, é claro, a gente está preocupado com as rotinas que mudaram completamente, o uso de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), que ficou muito evidente agora... Mas o medo de não fazer o melhor angustia muito. Quando a gente dá alta para um paciente com Covid, essa questão que às vezes colocam nas redes sociais, o paciente saindo, é o melhor momento de tudo, é quando a gente vê sair aquele paciente que ficou tão grave, né... Porque é tão impessoal, uso de máscara, você não tá me vendo, não tem empatia... Imagine o paciente, deitado, sedado, ele nem sabe o que aconteceu com ele (graças a deus ele nem sabe) mas ele atravessou tanta dificuldade durante o período de internação que quando ele sai é uma alegria muito grande para a equipe!  Então a recompensa maior é essa.

E o medo está no dia a dia, né... Então não é só o medo de se contaminar. Existe isso muito evidente, é claro, de passar isso para os familiares, da gente se contaminar e não poder trabalhar./.../

/.../ eu acho que o primeiro passo é igual quando você está numa guerra – e no começo o sentimento era muito esse...-, se a gente pudesse descrever... Quando você tá numa guerra você sabe quem é o seu inimigo, você sabe as armas que ele utiliza... Nessa situação específica, a gente tava indo para uma guerra, com a possibilidade de ter baixas (no sentido da gente ficar doente e tal...) Mas a gente não sabia o que estava enfrentando... Então, a primeira parte disso foi entrar numa luta sem  ver o inimigo cara a cara e você não sabe que armas ele está utilizando para você se defender ou contra-atacar. À medida em que as coisas foram acontecendo a gente começou a entender um pouco. A gente ainda não sabe todas as armas que o inimigo utiliza. Mas a gente já conhece mais ou menos as suas artimanhas. Então a gente consegue desviar de alguns momentos. A guerra ainda está acontecendo mas a gente venceu algumas batalhas. Infelizmente perdemos outras. E isso nos deixa muito tristes. Mas Bauru até foi agraciada com uma taca de mortalidade baixa e isso é empenho de a toda a equipe do hospital, dos recursos, da sociedade civil organizada, que ajudou muito a gente numa série de coisas... Então, o diário é o diário de uma luta! Uma luta que não acabou. Que acho que tá longe de acabar. Que a gente perdeu algumas batalhas mas acho que o saldo é positivo, nós vencemos várias. Nós estamos conhecendo as armas dos inimigos, né. E a gente espera que a gente consiga vencer... Nós vamos vencer, a gente sabe! Não sei a que custo, né? Que custo pessoal disso, né, não sei que sequela vai ficar para a equipe. Porque é muito triste você ver o paciente evoluindo de maneira desfavorável e você não saber o que é melhor naquele momento. Mas a gente tá aprendendo. E o diário é um diário de guerra.


Eu acho que daqui um tempo nós vamos poder olhar para trás e ficar surpreso em que condições a gente atravessou esse momento. Olhar no diário e dizer:
- nossa, era março de 2020 e começou tudo isso dessa maneira...
Só quem tá vivendo isso nessa geração... Eu sou médico há mais de 20 anos e é surreal o que aconteceu...
Então, o diário de uma lembrança de que a gente entrou numa batalha às cegas e a gente venceu essa batalha. Eu acho que o final do diário é isso, nós vamos olhar pra trás e ver que venceu... E que é inacreditável o tanto que a gente de expôs e o que a gente fez...

Esse distanciamento social para o médico é duro... Vocês estão me vendo com esteto e a mão... A minha ferramenta de trabalho são essas duas coisas. E ela precisa estar em contato com o paciente.
Imagina a sociedade estando cada vez mais distante das pessoas e isso ser um ato de amor. Você está distante e isso provar ser um ato de compaixão, de amor, de olhar pelo outro.
E para o médico, equipe de enfermagem, fisioterapeuta a gente tem que estar cara a cara com o paciente ali e mostrando muito mais amor porque a gente tá se expondo. Então, vai mudar em relação à sensibilidade... Conversar com a família por boletim médico, não ter a visita, expressar em palavras o que ele tá sentindo... Até a melhora na forma de se expressar com as famílias temos observado. 

Mudou. A própria estrutura da saúde no país, mundo todo, por conta da tecnologia, da demanda aumentada, ela infelizmente vem perdendo ao longo do tempo, eu falo muito isso para médicos residentes em formação - que a clínica é soberana, que o exame é complementar -, mas a medicina, por conta dos recursos tecnológicos, ficou um pouco mais impessoal. E eu acho que isso retornou um pouco às origens... Porque não adianta fazer exame nenhum, nada, é o olhar do doente, o toque do doente, a sensibilidade, porque nenhum exame era muito contundente. É uma doença que mostrou pra gente do tanto que a gente é frágil e o tanto que a gente precisa de humanidade, de toque, de carinho, para entender o lado do outro.
E em relação aos contatos com a familia, sem dúvida nenhuma, vai mudar a relação médico e paciente...

O ser humano, pai, família...  
A gente chega em casa e uma coisa que tem dificultado bastante é o isolamento. Minha mãe mora comigo, que não muito fator de risco mas é uma senhora de 70 e poucos anos e o contato fica cada vez mais restrito... E a gente procura, dentro de casa, manter uma rotina de distanciamento.  E isso é difícil, porque a gente tem medo de levar alguma coisa para dentro de casa...aquela história de provar um ato de amor com o distanciamento.

Outra coisa que judia muito  é que você vai embora pra casa, naquele momento em que era para você desligar, e você não consegue...  É muito difícil falar para uma família que um pai de família de 40, 50 anos faleceu – e a gente vive com isso todo dia... Então você, às vezes, você fica "não, esse cara não pode morrer, o que eu posso fazer por ele de diferente?" Aquela coisa fica na sua cabeça. Isso é ruim porque você acaba ficando doente. Então a gente tenta se desligar, criar uma armadura para poder continuar vivendo. Porque senão você sai do hospital, onde você fica 18, 24 horas às vezes aqui e chega em casa e continua com aquilo... 
O enfrentamento em relação a essa condição de proteger a sua família e conseguir tentar deixar para trás, pelo menos naquele momento, as coisas que você vivenciou é que tem sido um desafio muito grande para a pessoa, né, para o médico no convívio com da família. Muito difícil.

Viajar. Que vontade de poder viajar. Gosto muito de viajar. Não poder sair de casa, conhecer coisas e lugares novos... Você está restrito, privando da sua liberdade. Uma coisa invisível mostrou pra gente que nós temos uma série de limitações... /.../ uma coisa invisível nos mostrou como a gente deve valorizar as pequenas coisas. Que na verdade não são pequenas. Mas são fundamentais. O direito de ir e vir. O direito de tocar quem você ama. /.../ o direito de respirar o ar com tranquilidade. /.../
a sensação de tirar a máscara e respirar o ar... Coisas tão simples que não tem custo. O oxigênio está aí e não custa nada. A gente preocupado e às vezes nos falta o ar. Então, essas pequenas coisas que eu acho que vão mudar as pessoas no mundo.

Faltou abraço. Esposa, filhos, minha mãe. Os amigos. Gosto muito de reunir amigos em casa. Poder estar junto de novo. Não festa, nada. Mas eu gosto muito de fazer um bom churrasco. E todo mundo conversando. Esse convívio vai ser importante no retorno.

Que isso acabe logo, que venha uma vacina. Que a gente consiga olhar pra trás só e ver as coisas boas que aconteceram. Mas que isso acabe logo. Só isso que eu queria!"

   
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