Impacto na linha de frente

Os jornais anunciavam os impactos sociais e econômicos do novo coronavírus pelo mundo. Rapidamente, no Brasil, campanhas tomaram as redes sociais com a hashtag #FiqueEmCasa. Mas para profissionais da saúde essa não era uma opção. Vem deles, afinal, a esperança da população em receber cuidados assistenciais adequados diante de um inimigo invisível. Então, para eles, os profissionais da saúde, a frase que mais fez sentido foi "Nós ficamos aqui por você. Fique em casa por nós".  Seguida de outra frase muito famosa na Internet que aparece em placas de motivação e auto-ajuda, de autoria indefinida: "Vai. E se der medo, vai com medo mesmo!?"

E foi assim que técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, biólogos, técnicos de laboratório etc. entraram em ação. Como um verdadeiro batalhão, eles foram para o front e começaram a luta contra "alguém" de quem pouco sabiam e cujos impactos ainda eram desconhecidos.

Para enfrentar a guerra, esses combatentes receberam apoio da gestão hospitalar e de grandes aliados na luta contra o coronavírus. Tudo para que pudessem trabalhar com o máximo de segurança e também com equilíbrio emocional, afinal, estar no front significa integrar batalhões espalhados pelo mundo na tentativa de salvar vidas, mas, ao mesmo tempo, significa também estar vulnerável e sujeito a temores como o de eventualmente levar o vírus para dentro de suas casas, junto de suas famílias. São diversos os impactos na linha de frente e é isso que compartilhamos aqui com você. 

"Enquanto ela caminhava lentamente pela calçada vazia, sentia uma sensação estranha. Um silêncio inquietante pairava e só se rompia quando os ônibus da madrugada dobravam uma esquina. Os primeiros raios de sol da manhã, leves e alaranjados, contrastavam com a paisagem no contraluz, formando a provável pintura de um artista qualquer. Mais uma jornada se iniciava e aquele frio na barriga a consumia. Mas quando olhava para aquele lindo céu, ela se encorajava, vencia muitos medos, com a dádiva de um novo dia. Só que ao caminhar, ao seu redor carregava uma espécie de aura indefinida, que em alguns momentos emanava esperança e, em outros, medo. Caminhando em meio a poucas pessoas o branco do traje parecia atrair olhares com "tons de heroísmo" e ofuscar a visão de alguns que viravam o rosto com a nítida expressão de medo, certamente por refletir o "vírus invisível" na imaginação. Mas isso foi no começo, depois aquela situação foi se tornando rotineira. Aprendeu a conviver com o Coronavírus e seus diversos impactos. Difícil mesmo era trabalhar lado a lado com ele, sem vê-lo, e voltar para casa com a possibilidade de carregá-lo junto. Vestir-se agora exige um pensamento processual, racional, e não mais automático como fora outrora. Despir-se também demanda a atenção e o cuidado de quem desarma uma bomba. Aquele que se perdesse em pensamentos durante a manipulação dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), em meio a paramentação ou desparamentação, procedimentos imprescindíveis no atendimento da Covid-19, poderia estar em apuros. Distrair-se era muito arriscado, não apenas para ela, mas para sua equipe, para a sua família e para todos que dela se aproximassem."

Em meio a tal cenário de pandemia, a narrativa acima se aproxima da realidade vivida por muitos profissionais da saúde, e foi com base em diversos desses aspectos que Andréia Barbosa de Lima, supervisora do Serviço de Psicologia Hospitalar HEB, elaborou uma espécie de "manual de sobrevivência emocional" no qual os profissionais poderiam encontrar formas de lidar com as lutas e com os lutos. 

O luto é um processo que envolve respostas a uma perda por morte, a um rompimento de vínculo, seja pela perda de alguém ou algo significativo em nossas vidas. Desta forma, a pandemia relacionada à Covid-19 trouxe à tona as várias facetas das perdas, como a morte, mudanças no cotidiano, distanciamento social, isolamento, entre outros.

No cenário atual relacionado à Covid-19, é importante considerar algumas particularidades que os profissionais da saúde estão vivenciando. Nesse momento, estes profissionais estão em evidência nas manchetes de TV, redes sociais, grupos do WhatsApp, conversas em família e amigos e outros meios de comunicação. O valor que lhes tem sido atribuído é de fato digno e merecedor. Apesar do mérito reconhecidamente, é preciso pensar na saúde mental e quais as repercussões emocionais que estão expostos durante a pandemia e após esse surto.

Os profissionais da saúde, e aqui incluo todos indiscriminadamente, possuem medos, insegurança e ansiedade em suas vidas, e estão diante de outras perdas nas instituições de saúde em que trabalham, como por exemplo: perdas de colegas de trabalho, parentes que estão hospitalizados e outras pessoas próximas. Vale ressaltar que essas situações ocorrerem em muitos países, pois a taxa de infecção entre profissionais de saúde vai de 20% a 40%, indicando uma chance significativa de que sejamos infectados e uma chance menor, mas presente de óbito. Diante dessas situações, algumas sugestões são importantes para esses profissionais, como: 1) sejam honestos consigo mesmo e reconheça suas emoções e valide seus sentimentos; 2) é permitido nos sentirmos vulneráveis e ao mesmo tempo corajosos; 3) reafirmem seu propósito diariamente (sua presença ali não é por acaso); 4) procure ajuda se esses sentimentos afetarem suas capacidades profissionais e humanas; 5) mantenham a esperança de que esta situação irá melhorar.

Além das perdas que podem ser concretas e simbólicas, é preciso  enxergar além dos comportamentos observáveis no dia a dia desses profissionais. É comum diante de situações de estresse e sobrevivência, acionarmos defesas de forma inconsciente, adotando posturas com esses discursos: "não estou me afetando", "está tudo bem", "consigo separar as coisas", entre tantas outras frases comuns nesse momento. No entanto, essas defesas podem mascarar sofrimento e doenças ocupacionais. Por outro lado, algumas defesas nos protegem, mas precisamos ficar atentos a essa situação e mecanismo psíquico.

Nesse sentido, torna-se fundamental que os serviços de saúde ofertem por meio de psicólogos, psiquiatras e outros profissionais da saúde mental, suporte e orientação quanto ao impacto da pandemia, das adaptações nos serviços de saúde, mudanças de postos de trabalho, entre outras demandas. Da mesma forma, é importante contribuir para a promoção da saúde mental e prevenção de impactos negativos aos profissionais da saúde, auxiliando-os no manejo de diversas situações, como funcionários que testaram positivo para o coronavírus; frustração de muitos profissionais por não conseguir salvar vidas, apesar de todo empenho; auxiliar no fortalecimento da rede de apoio socioafetiva; orientação sobre sintomas psicológicos e outras reações emocionais, sendo as mais comuns:

1) Reações de estresse que envolvem alteração do sono, sentimentos de insegurança, sintomas somáticos, irritabilidade, falta de concentração e comportamentos de evitação.

2) Transtornos Psiquiátricos como: Transtornos de Ansiedade, Depressão, Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT), Luto Complicado.

3) Comportamentos de Risco: abuso de álcool e tabaco, uso de medicamentos sem prescrição médica ou abuso dos mesmos quando já utilizados; desarmonia entre a vida doméstica e trabalho e violência interpessoal.

Diante dessa situação, cabe ao psicólogo e instituições de saúde propor estratégias de atenção à saúde mental, considerando alguns desafios para essa atuação, como baixa adesão às intervenções, em função da falta de tempo e do cansaço pela sobrecarga de trabalho, em particular para aqueles que estão na linha de frente. Assim, é fundamental propor outras estratégias para alcançar esses profissionais, como orientações nos setores aos funcionários, viabilizando o acesso ao atendimento psicológico, os quais já estão sendo oferecidos na instituição por meio do plantão psicológico e por uma rede de psicólogos voluntários que se disponibilizaram a atender os funcionários do HEB de forma online, flexibilizando dias e horários.

Durante a pandemia, podemos adotar muitas práticas de auxílio à saúde mental e os gestores dos serviços de saúde podem auxiliar e apoiar essas práticas. Outro ponto a se considerar é o período pós-pandemia, pois as pesquisas apontam que durante as epidemias, o número de pessoas com a saúde mental afetada tende a ser maior que o número de pessoas afetadas pela própria infecção. Tragédias anteriores como na epidemia do Ebola, mostraram que as implicações para a saúde mental podem durar mais tempo e ter maior prevalência que a própria epidemia, sendo que os comportamentos relacionados ao medo tiveram um impacto epidemiológico individual e coletivo durante todas as fases das pandemias, aumentando as taxas de sofrimento e sintomas psiquiátricos da população, o que contribuiu para o aumento da mortalidade indireta por outras causas que não a doença em si.

Assim, é tempo de aprimorar as práticas e cuidados com a saúde mental do profissional da saúde e pensar em estratégias durante e pós-pandemia. Apesar da situação atual, é preciso repensar e refletir sobre esse momento, o que ele nos ensina e nos proporciona, apesar do sofrimento. Enquanto seres humanos, podemos acionar os nossos recursos internos para enfrentar esse momento, mantendo a esperança, o otimismo, a fé, a ajuda mútua e o cuidado uns com os outros, confiando de que isso passará e podemos sair dessa situação com grandes aprendizagens.

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*Andréia Barbosa de Lima é supervisora do Serviço de Psicologia Hospitalar HEB.

 Diário do front:

TV Tem homenageia profissionais da linha de frente da Covid-19 do HEB no dia Mundial da Saúde

'Não é hora de pensar só em mim' - Jornal da Cidade de Bauru, Entrevista da Semana