Comissão de Controle de Infecção Hospitalar – CCIH

Lucas Marques da Costa Alves

Médico infectologista e intensivista, é Coordenador da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do HEB.
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Confira o depoimento

Relato sobre o começo da pandemia | julho de 2020
As primeiras ações da pandemia na verdade aconteceram numa tentativa de planejamento. A gente não sabia exatamente  o que esperar . Já tínhamos experiências de fora .Tanto fora do Brasil como iniciando em São Paulo. Mas ainda era tudo muito novo. Então começamos nos reunindo. Um grupo grande de pessoas  para poder tomar as atitudes, tentando planejar ao máximo possível. Uma coisa que a gente não sabia exatamente o que ia acontecer.

Quando o processo começou, nossa grande preocupação era o inesperado. Não sabíamos o que esperar. Tudo era muito novo e continua sendo muito novo na verdade, mas naquele momento as coisas estavam apenas começando. Então o desconhecido foi o mais complicado. A gente não sabia exatamente o que ia enfrentar, como enfrentar, a velocidade das coisas e dos acontecimentos, as faltas de insumos, ninguém tinha uma ideia exata do que viria nos próximos meses.

Como tudo na medicina, a gente vem aprendendo. Os primeiros casos até os de hoje a gente vem numa curva de aprendizado muito grande, tanto aqui no Hospital Estadual, quanto no Brasil e no mundo. Então, do começo, dos primeiros casos até hoje, basicamente a diferença é a curva de aprendizado. A gente vem aprendendo com o passar do tempo.

Como o Brasil foi um dos últimos países grandes a serem expostos a esse vírus, a gente já tinha uma noção baseada nos outros países, de como deveria ser a paramentação correta, como o profissional deveria se vestir, e quais dispositivos de segurança deveria utilizar. Então já tínhamos uma orientação já baseada na experiência de outros países, já tínhamos cartilhas da Organização Mundial da Saúde (OMS), então, tínhamos uma orientação nesse sentido. Nosso grande desafio no início foi que começou a faltar insumos, só que já estávamos preparados, então essa parte a gente conseguiu segurar desde o começo alguns problemas, na grande maioria das vezes sem grandes problemas, e já utilizando as orientações que na paramentação não mudaram desde que as coisas começaram.

O pânico na pandemia é uma coisa constante. Ele vem diminuindo, mas inicialmente o pânico era muito presente, sem dúvidas, principalmente entre os profissionais da saúde. A gente utiliza o método de treinamento no local, então, uma enfermeira da CCIH treinava para isso, ia nos setores, vai até hoje, explicando, orientando, a gente fez palestras aqui no hospital , treinamentos, vídeos mostrando porque hoje uma das ferramentas que o pessoal mais usa são os celulares, os vídeos, então a gente produziu vídeo, com paramentação, com orientações, aqui no hospital todo mundo tem a disponibilidade do telefone da CCIH, a gente está sempre disponível pra isso, mas acho que o mais importante de tudo na verdade foram duas ações: uma foi o vídeo, porque na hora que você precisa, na hora que você tem a dúvida, o vídeo está lá no seu bolso e você olha; e a segunda foi o treinamento no local, então, o profissional está lá trabalhando, a enfermeira da CCIH chega lá, já olha, já faz junto. Eu acho que essas duas atitudes que a gente teve foram as mais relevantes para que o profissional se sentisse mais seguro em relação à paramentação e como fazer essa paramentação.

O que mais costuma chamar atenção são aqueles pacientes que fogem da regra. A gente teve alguns casos muito marcantes. Teve um caso de um paciente que veio encaminhado de uma outra cidade, com cerca de 50 anos, chegou aqui respirando sozinho, ele foi piorando, piorando, até que ele precisou ser sedado e ligado ao aparelho para poder respirar. Dois dias depois de ele estar no aparelho, infelizmente a mãe dele chegou aqui no hospital e internou na mesma UTI, com o mesmo quadro, e também evolui para a necessidade de respirar com aparelho, mais dois dias depois internou o pai dele, na mesma UTI. Dessa forma. Os pais dele eram muito idosos, muito graves, e infelizmente não evoluíram bem... mas ele saiu. E isso foi muito marcante porque a gente estava dentro de uma unidade de terapia intensiva, com os pais e o filho lá dentro. O filho conseguiu se recuperar, está bem, e recebeu alta, mas os pais, infelizmente não conseguiram.

Outro caso marcante foi o caso de uma paciente jovem, com câncer de ovário, já metastático, que estava internada no hospital, veio para cá por conta da Covid-19, ficou muito grave, com alguns dias de ventilação mecânica, como infelizmente ela já tinha doença metastática, já tinha acometimento de pulmão pela doença, ela ficou muito grave, ficou vários dias de ventilação mecânica, mas a gente conseguiu reverter o quadro, ela conseguiu se recuperar, e agora está dando sequência ao tratamento oncológico, sem nenhuma sequela até o momento pelo menos dessa doença.

Desde o começo da pandemia a rotina de todos mudou muito. Passamos a usar máscara, porque as pessoas não se cumprimentam mais com as mãos, hoje evitamos toque, e tudo mais. Pra mim a rotina mudou muito porque quando a gente acorda e vem pra cá, você não sabe exatamente o que esperar. A gente vem numa escalada de casos, então você chega na UTI, com pacientes muito graves, pacientes que a gente vem aprendendo a trabalhar, mas que não tem uma terapêutica realmente eficaz contra o vírus. É uma batalha diária porque é uma coisa que infelizmente ainda é desconhecida. A gente vem dia a dia mudando as ferramentas de trabalho, as medicações, pra ver se a gente consegue uma boa resposta, mas é muito complicado porque as respostas nem sempre são as que a gente espera. Mais do que isso, todo dia tem novas informações, todo dia tem coisa nova saindo, e não dá tempo de a ciência solidificar e passar uma coisa realmente confirmada, então a gente pega notícias, coisas novas, e vai todo dia tendo que peneirar o que é informação baseada em ciência, o que é informação que as pessoas “acham”, e chega na UTI a gente tem um monte de gente lá, acompanhantes de pacientes questionando coisas que saem na mídia, então a gente acaba tendo que lidar com bastante coisa. O dia a dia tem sido bastante pesado, a gente tem visto pacientes muito jovens, infelizmente, muitos idosos, pacientes muito graves morrendo que a gente não via até três ou quatro meses atrás, então tem sido uma rotina bastante extenuante.

Tem que desligar né. Não é que dá pra desligar, você TEM QUE DESLIGAR, porque se não fizer isso você não consegue. Uma coisa é você trabalhar sob esse nível de pressão e de condição por uma semana, quinze dias, mas a gente está nessa há 3 meses. Então se a gente não desliga a gente não consegue trabalhar. O problema é que a gente desliga por pouco tempo né, então você desliga por algumas horas e é isso aí. Não tem muito mais do que isso. Mesmo porque a gente tem que trabalhar e infelizmente a condição está mais complicada.

As ferramentas que a gente tem hoje, muito baseadas em troca de informação , elas estão sendo fundamentais para tomar muitas decisões, então a gente acaba tendo um contato muito próximo com diversos profissionais de diversas área envolvidas. Então hoje o processo de decisão ele é muito mais compartilhado do que ele era até 10 anos atrás. Então aqui no Hospital Estadual a gente toma as decisões baseadas na opinião de vários profissionais, a gente tem um corpo de infectologistas aqui, a gente discute as decisões pautadas no que a gente tem de mais novo em literatura, e temos ido buscar também o que outros serviços estão fazendo, porque essa troca de informações entre serviços está sendo fundamental para que a tomada de decisão ela não seja individual. A gente tem vários olhares, várias opiniões, para chegar à melhor definição. Então, essa tomada de decisão hoje, por mais difícil que ela seja, o fato de a gente poder compartilhar experiências de outros serviços que já passaram muitas vezes pelo que a gente passou tem sido muito importante pra gente tentar ser o mais eficiente possível. Acho que essa troca de informações do ponto de vista técnico e profissional elas são importantíssimas. Porque não dá tempo de a gente ler tudo, estar próximo de tudo que sai na literatura, todos os estudos, tudo que tem de novo. É impossível você  conseguir seguir toda a produção de conhecimento que se tem. Então quando a gente tem troca de informações, a gente consegue estar mais próximo da maior abrangência técnica possível. Em relação à troca de experiências do ponto de vista pessoal, humano e de sensações, eu acho que essas ferramentas trazem algumas coisas muito interessantes, como as visitas virtuais. Então os acompanhantes conseguem ver ou até conversar com os pacientes que estão internados e infelizmente, por toda a condição, não podem receber visitas. Então, essa parte foi muito interessante. Pra gente como profissional eu acho que a troca ainda da coisa humana é muito mais no ao vivo, no dia a dia, e não tanto usando essas ferramentas tecnológicas de hoje. Mas em relação à parte de pacientes e tudo acho que tem sido fundamental. A gente tem visto aqui o pessoal da Psicologia e do Serviço Social que tem feito contato com as famílias e isso, o que as famílias relatam pra gente é que tá mudando bastante, que pra eles está sendo importantíssimo.

A gente até então dava, principalmente em UTIs, as orientações aos familiares no leito, no horário de visita pré-determinado. Hoje a gente emite boletins porque essas famílias não podem vir ao hospital. E eu acho que mudou bastante porque a partir do momento que a gente tem que pensar no que vai escrever, e tentar escrever algo técnico de um jeito que um leigo consiga entender muda muito a nossa perspectiva. Porque você começa a se colocar muito mais do outro lado pra entender como conversar. Eu acho que mudou bastante. A gente acaba tendo que se colocar no lugar do outro o que é muito importante.

A gente quase não sai de casa. É de casa do trabalho. As convenções sociais, os encontros, bares, restaurantes, encontrar amigos, hoje tá muito distante. Eu não sou daqui, sou de fora daqui, estou há 300 km da minha família. Minha esposa está há 400 km da família dela. Ela também não é daqui. E esse contato hoje está muito distante. Faz 3 meses que eu não encontro minha família, faz 3 meses que minha esposa também não encontra a família dela. A gente encontra os amigos com os quais a gente trabalha. A gente não consegue encontrar os amigos que não são do trabalho. E isso é muito ruim. Isso é muito ruim porque a gente acaba tendo uma sobrecarga e não consegue desligar. A parte de atividade física fica muito complicada porque a gente não pode fazer a maioria das atividade. Então essa pandemia tem limitado muito as ferramentas que a gente tem pra descansar, pra aliviar a cabeça, e a gente vai fazendo isso. A gente fica mais em casa, vê mais filme, e é isso basicamente.

Nossa, tanta coisa...(risos). A primeira coisa que quero fazer é encontrar com os amigos num bar, tomar uma cerveja, todo mundo sem máscara, e ninguém se preocupando em ficar a dois metros, basicamente.

Falta. Nós somos acostumados. Nós somos de um país em que desde pequeno se faz isso. Falta sim, faz bastante diferença, o abraço, o aperto de mão, faz bastante diferença. E o abraço especial vai para a família. Minha mãe, meus irmãos, isso faz falta. Então, a expectativa de abraçar eu tive durante o primeiro mês, e depois disso eu aprendi a não ter essa expectativa porque eu não sei quando vai acabar. Então eu vou esperar acabar, aí sim a gente vê.

É uma coisa que mudou bastante e eu espero que permaneça depois da pandemia é que as pessoas começaram a manter mais contato. Eu acho que com o medo que a gente tem, a ansiedade, e essa ausência de poder conversar com outras pessoas, no ambiente de trabalho, tudo mais, a gente vê que as pessoas têm conversado mais, têm trocado mais experiências, isso é muito importante.